Carta do Recife 2.0

PRESERVAÇÃO E ACESSO
No atual contexto de desenvolvimento da sociedade de informação e de expansão da economia da cultura e da cultura digital no Brasil, é imperativo definir uma política pública para a digitalização de acervos memoriais (referentes ao patrimônio cultural, histórico e artístico brasileiros). Uma tal  política, de alcance nacional e que envolva os três níveis da Federação e as instituições privadas comprometidas com a guarda de acervos de valor cultural,  será essencial  para orientar as iniciativas de patrocinadores, agências financiadoras e fundos que tem oferecido recursos públicos e privados para a reprodução digital dos acervos e a sua publicação na rede mundial de computadores (internet).
Entendemos ainda que os investimentos públicos na digitalização dos acervos devem estar orientados para uma política nacional de produção de conteúdos para a internet, contribuindo para a redefinição positiva da presença da língua portuguesa e da cultura nacional.
Um primeiro passo foi dado com o Memorando de intenções que resultou dos encontros de 5 de julho e 2 de agosto de 2007 promovidos pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil – CGI.br. Assinam este documento diversas entidades, públicas e privadas. Trata-se de um esforço para definir diretrizes de uma política pública de apoio a produção de conteúdos digitais. Segundo o documento, “[...] frente ao desenvolvimento de novas mídias, como a Internet, a TV Digital e as mídias móveis, bem como sua convergência, o país tem a oportunidade de presenciar grande valorização de seus acervos, e o enorme desafio de preparar-se nos próximos anos para ser um grande produtor de conteúdo, sendo imprescindível assegurar que a cultura brasileira preencha esses espaços essenciais à evolução de nossa identidade no século XXI”.
Foi neste sentido que o Ministério da Cultura, em associação com o Projeto Brasiliana USP (da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin da USP) e a Casa de Cultura Digital, organizou o Simpósio Internacional de Políticas Públicas para Acervos Digitais (SIPPAD), realizado na cidade de São Paulo entre 26 e 29 de abril de 2010. Nele estiveram reunidos especialistas e profissionais do Brasil e do mundo para a troca de experiências, conceitos e soluções tendo em vista a proposição de políticas públicas de digitalização de acervos e a formulação de um modelo sustentável de preservação e acesso universal do patrimônio cultural brasileiro. Como se estabeleceu na carta de intenções dos organizadores do SIPPAD, “a digitalização dos acervos culturais do Brasil tem se tornado uma tarefa de grande urgência, solicitando uma reflexão sobre os limites impostos pela atual legislação do direito autoral, as novas tecnologias, os padrões e normas, assim como os caminhos para a formação de uma rede efetiva entre as instituições e os projetos já existentes”.
Outro passo importante foi dado com a resolução n. 31 do Conselho Nacional dos Arquivos (Conarq), de 28 de abril de 2010. Este documento, que dispõe sobre a adoção das Recomendações para Digitalização de Documentos Arquivísticos Permanentes, procura  auxiliar as instituições detentoras de acervos arquivísticos, na concepção e execução de projetos e programas de digitalização. O documento estabelece as diretrizes gerais para o processo de digitalização dos acervos, entendido como “uma das ferramentas essenciais ao acesso e à difusão dos acervos arquivísticos, além de contribuir para a sua preservação, uma vez que restringe o manuseio aos originais, constituindo-se como instrumento capaz de dar acesso simultâneo local ou remoto aos seus representantes digitais como os documentos textuais, cartográficos e iconográficos em suportes convencionais”. Por outro lado, a Biblioteca Nacional, com a sua Biblioteca Digital, tem indicado soluções técnicas e caminhos importantes para a construção de uma rede nacional de acervos digitais.
Outras iniciativas ganham corpo no país, sugerindo a possibilidade de criarmos mecanismos efetivos de colaboração – para fortalecer os projetos em curso e preparar a proposição de novos. Entre estas, devemos destacar a Rede de Cooperação Interinstitucional Memorial Pernambuco, que reuniu, em 2008, o Museu da Cidade do Recife, a Biblioteca Pública de Pernambuco, o Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano e o Laboratório Liber da UFPE, com o objetivo de “promover cooperação interinstitucional através da realização de programas estratégicos de promoção, preservação e acesso ao patrimônio memorial e informação de interesse histórico, custodiados por instituições de missão memorial de Pernambuco”. Esta Rede propõe um modelo de ação que esperamos ampliar em escala nacional e a formulação de seus objetivos devem nortear a formação desta Rede Nacional, com o escopo de “estabelecer uma rede de acervos e pesquisadores integrados em uma estrutura lógica interoperável e interinstitucional, com a manifesta intenção de partilhar de forma inteligente recursos humanos, financeiros, tecnológicos, saberes e capacidades específicas de cada parte, em benefício do bem comum e do patrimônio cultural, unindo em iniciativas comuns áreas onde a duplicidade de esforços resultam em desperdício de tempo e recursos”.
O Ministério da Cultura (instigado pela importante atuação do Fórum da Cultura Digital) tem liderado as iniciativas para a formulação de uma política pública de digitalização dos acervos memoriais. Neste sentido que o Plano Nacional de Cultura, instituído pela Lei 12.343 de 2 de dezembro de 2010, determinou (no item 3.1.17 do seu anexo “Diretrizes, estratégias e ações”) a necessidade de implementação de “uma política nacional de digitalização e atualização tecnológica de laboratórios de produção, conservação, restauro e reprodução de obras artísticas, documentos e acervos culturais mantidos em museus, bibliotecas e arquivos, integrando seus bancos de conteúdos e recursos tecnológicos”.
Estamos claramente de acordo. Contudo, nosso entendimento é que tal política deverá ser construída não apenas a partir de uma profunda reflexão e planejamento, mas também da experiência acumulada pelos atores efetivamente envolvidos com a digitalização dos seus acervos. No contexto de (r)evolução permanente da tecnologia, a fixação da padrões e procedimentos devem estar necessariamente colados no cotidiano da produção desta dimensão da cultura digital.
Na lógica peculiar da cultura digital, as iniciativas ganham vigor e visibilidade a partir da inventividade fragmentada e, ao mesmo tempo, interconectada – característica da imensa rede que se constrói com o esforço colaborativo de milhares (ou milhões) de atores individuais ou coletivos. Entre estes tem se destacado as corporações (entre elas, as grandes corporações), cujos interesses privados contrastam, por muitas vezes, com o bem público. As instituições culturais responsáveis pela preservação e pelo acesso dos acervos que conformam e permitem a existência da memória nacional têm desenvolvido (de forma ainda desconexa) diversas iniciativas de reprodução e publicação na internet de seus acervos. Cabe à Rede Memorial impulsionar um esforço de cooperação e de genuína solidariedade entre instituições e projetos – movimento essencial para a cultura brasileira no século XXI.

O Fórum do Recife e a carta 1.0
No dia 14 de setembro de 2011, durante a CTCM (Conferência sobre Tecnologia, Cultura e Memória: Estratégias para a preservação e o acesso à informação), na cidade do Recife, realizamos, na sala do conselho do Instituto Ricardo Brennand, uma primeira reunião de representantes de instituições públicas e privadas envolvidas (ou desejosas de se envolverem) com projetos de digitalização dos seus acervos. A reunião tinha por principal objetivo, a discussão de caminhos práticos para contribuir com os processos em curso de valorização da cultura brasileira.
Nesta ocasião, os representantes das instituições decidiram estabelecer uma rede nacional, denominada Rede Memorial, tendo por base uma carta de princípios para sustentar uma política de digitalização dos acervos memoriais e de procedimentos para a conformação de um espaço colaborativo de trabalho.
Neste primeiro momento, a Rede Memorial assumiu três compromissos e estabeleceu a necessidade de desenvolver três dimensões de padronização. São estes os seis princípios, definidos nesta Carta do Recife 1.0, para uma política de digitalização dos acervos sob a responsabilidade das instituições participantes.

O II Fórum da rede memorial
O II Fórum da Rede Memorial foi realizado nos dias 21 e 22 de junho de 2012, na Cinemateca Brasileira, na cidade de São Paulo. No segundo dia do Fórum, três grupos de trabalho se reuniram (Digitalização e Preservação Digital; Metadados e Arquitetura da Informação de Repositórios Digitais; e Diagnóstico das Instituições e Estruturação da Rede) e discutiram sugestões para uma nova versão da Carta do Recife, que foram incorporadas pelo Comitê Gestor. Esta nova versão da Carta do Recife contempla dez orientações e princípios para nortear as atividades dos participantes da Rede Memorial.


Dez princípios e compromissos para a digitalização dos acervos memoriais
1. Compromisso com acesso aberto, público e gratuito
Os membros da rede afirmam seu compromisso com a difusão dos acervos sob custódia, garantindo o acesso universal, preservados os direitos do autor, aos documentos digitalizados e à democratização da cultura. Neste sentido, os participantes da Rede manifestam sua adesão aos protocolos abertos, para permitir que os documentos e seus metadados sejam acessíveis por diversos serviços de busca e compartilhados pelos repositórios digitais.
2. Compromisso com o compartilhamento das informações e da tecnologia
Os membros da Rede se comprometem em compartilhar suas experiências, o desenvolvimento de soluções tecnológicas e também apoiar projetos comuns para a melhoria dos repositórios digitais e dos procedimentos de digitalização e preservação da memória digital.
3. Compromisso com a acessibilidade
Em relação à acessibilidade web, os membros da Rede se comprometem em realizar todos os esforços para atender às recomendações e padrões do W3C (World Wide Web Consortium), que determina padrões para acessibilidade, no espírito do design universal. Neste sentido, deveremos trabalhar para conseguir as validações de padrões de acessibilidades, certificações, oferecidos pelo W3C no projeto Web Accessibility Initiative (WAI). Um primeiro esforço deve ser feito para aperfeiçoar as tecnologias de OCR e mesmo realizar a revisão direta dos textos, pensando em implementar softwares leitores de tela e outras iniciativas, seguindo a orientação da Web Content Accessibility Guidelines.
4. Compromisso com a identificação, organização e tratamento como

pré-requisito para digitalização
Considerando que toda informação imagética ou sonora, bi ou tridimensional, em qualquer suporte ou formato é considerada documento e, em cada disciplina e área do conhecimento esses registros documentais possuem métodos, técnicas e práticas para a identificação, organização e tratamento para preservação, deverá ser compromisso dos membros da Rede o atendimento dessas especificidades antes de iniciarem quaisquer projetos de digitalização nestes documentos.
5. Padrões de captura e tratamento de imagens
A Rede entende que o processo de digitalização de um documento consiste na transformação da informação de um suporte físico analógico em uma cópia digital, com a maior fidelidade ao original possível. Esta cópia materializa-se em um conjunto de códigos que podem ser manipulados por programas de computador e reproduzir, em dispositivos de visualização, a imagem originalmente capturada.
A Rede tem o compromisso do constante desenvolvimento e atualizações de recomendações e melhores práticas, seguindo e ampliando os padrões já definidos no documento “CONARQ – Recomendações para Digitalização de Documentos Arquivísticos Permanentes” para incluir outros tipos de suportes e atualizações.
6. Padrões de metadados e de arquitetura da informação dos repositórios digitais
A chave para o acesso homogêneo à recursos heterogêneos reside nos metadados destes mesmos recursos. Os membros da rede se comprometem a trabalhar e compartilhar os conhecimentos ligados a sistemas que permitem a leitura destes metadados, que estão presentes nos próprios recursos ou em base de dados construídos com plataformas que permitem a disseminação e futura migração destas informações.
7. Padrões e normas de preservação digital
Com a digitalização dos acervos memoriais é imprescindível estabelecer uma política para preservação de longo prazo dos objetos digitais. Esta política deverá abranger inclusive padrões e normas para a preservação digital como também a formação de profissionais para atuar nesta área. A Rede tem como meta do trabalho a ser realizado analisar as recomendações existentes e produzir processos e normas para as devidas estratégias de preservação digital a longo prazo, buscando inclusive a aderência aos padrões internacionais.
A definição de diretrizes para decidir se um determinado material será preservado digitalmente é também um aspecto importante. Sem tais critérios, corre-se o risco de se gastar esforço e recursos valiosos na preservação de material digital que terá pouco valor no futuro. Assim, será necessário definir normas para a seleção e definição de quanto será digitalizado e preservado digitalmente.
Será necessário também sensibilizar os diversos stakeholders (autores e seus herdeiros, leitores, instituições que mantém os acervos, depósitos legais, bibliotecas, editoras, governos) envolvidos com os acervos memoriais para a questão da preservação digital de longo prazo.
8. Projetos de educação, pesquisa e formação de pessoal
Todos estes trabalhos só podem ser realizados com um intenso processo de pesquisa, educação e formação de pessoal. A Rede Memorial tem como compromisso desenvolver projetos nestas áreas.
9. Marketing e educação: difusão dos acervos, pesquisa e avaliação dos resultados, programas de inserção dos acervos na trama da sociedade
A Rede Memorial tem como compromisso também pensar em metodologias para avaliar a eficácia de projetos de difusão de acervos. O desenvolvimento de programas de marketing e educação nas instituições pode ter um impacto grande para promover a inserção dos acervos, digitalizados ou não, na vida diária da sociedade.
10. Direitos autorais
A questão da propriedade intelectual é um aspecto importante a ser respeitado. Os acervos memoriais podem possuir materiais que ainda não estejam em domínio público. Torna-se, portanto, necessário estabelecer bases legais para permitir a preservação e difusão digital deste material e a criação de sistemas de gerenciamento da situação da propriedade intelectual e do controle da autenticidade do material digital.

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